terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Ave Santa Catarina! A Pedra Encantada

Preliminarmente, acho legal fazer algumas considerações.

Os tinamídeos são uma família de aves terrícolas que servem de caça a uma grande variedade de predadores, entre os quais alguns seres humanos que se prestam ainda hoje a abatê-las, a despeito das leis que as protegem.

Eurico Santos, em 1952, já asseverava em seu "Da Ema ao Beija Flor":

"...verificamos que, descoberto o valor culinário destas aves(tinamiformes), estava-lhes decretado o extermínio."

" Também usam caçá-las pela traição, emboscados em choças feitas de ramagens, ou trepados em giraus, atraindo-as por meio de pios... Esse hábito de caçar à traição, disfarçado no mato, aprendemos com o nosso íncola, que se envolvia em ramagens verdes e assim iludia a caça."

Bem amigos, essa introdução foi para aqueles que ainda não conhecem as aves desta família, para que tenham uma ideia da dificuldade que é simplesmente colocar os olhos nelas.

São aves super ariscas, evoluíram para serem fantasmas, para viverem ocultas, fugindo da visão binocular dos seus predadores. E o homem, como se sabe, sempre foi um grande inimigo a se temer.

Então, sem muito trabalho, o máximo que normalmente se consegue não foge muito deste registro que fiz no Parque do Zizo, em 2011:

Acreditem, é um inhambuguaçu

Mas com muito trabalho e determinação, o nosso amigo Vilde "criou" a "Pedra Encantada", possibilitando não só a fotografia dessas espécies, mas alcançando uma qualidade nunca antes vista nesse país.

Servindo-se de técnicas de caça, está democratizando, por via de imagens espetaculares obtidas por ele e por tantos outros fotógrafos, o acesso ao conhecimento de várias espécies cinegéticas que ainda sofrem com a destruição do seu habitat, e assim, por conseguinte, colabora com a preservação das mesmas, pois não se preserva o que não se conhece.
Acima de satisfações pessoais, este seu trabalho é digno de grandes honrarias.

Bem, ao relato!

Depois que o Vilde me deixou no local, tentei seguir da melhor forma possível suas orientações, sendo o mais discreto possível. Fiquei praticamente imóvel o tempo todo, permanecendo em absoluto silêncio, com a câmera apontada para a gloriosa Pedra Encantada, em uma espera que de tão empolgante, parecia entorpecer os sentidos.

Uma doce hora se passa e quando começou a pintar uma certa angústia (afinal, apesar de todo o excelente trabalho do Vilde e da imponente mata à minha frente, nunca podemos esquecer da imprevisibilidade das aves), o primeiro ente de nossas matas aparece, um dos columbídeos mais excêntricos que conheço!

O coração cisma em sair pela goela, a respiração acelera, o corpo reage teimando em quebrar o silêncio, engulo seco esforçando-me para não me deixar denunciar.

Apesar de não se tratar de um tinamídeo, era a espécie fora desta família que mais queria fotografar e a que imaginava ser a mais difícil das que estavam frequentando ultimamente o local. Também muito arisca, daquelas que ficamos pensando se algum dia conseguiríamos sequer alguma foto, mesmo que do "naipe" da do inhambuguaçu acima.

Assim como chegou, a pariri (Geotrygon montana) foi embora, caminhando tranquila e silenciosamente



O tempo continua a passar, perene e lentamente, e então um canto ecoa na mata sombria, pouco depois outro, diferente do primeiro. Não sei se em algum tipo de resposta ou se pelo magnetismo da Pedra Encantada, que nesta altura, já devia estar exercendo seus poderes sobre eles. Fato é que a adrenalina correu forte nas veias! Eram o inhambuguaçu e o jaó-do-sul!

Ah... aqueles chamados... parece que são produzidos pela própria floresta...

Depois de alguns minutos de silenciosa e eufórica espera, ouço de novo, em auto e bom som, aquele incrível canto do inhambuguaçu praticamente do meu lado! PUTZ!!! SENSACIONAL!!!

Então pensei: "Tá perto pra baralho!!! É agora!!!"

Continuo na minha rotina: olho no visor, breve pausa para descanso, olho no visor, uma olhadinha bem discreta no pouco que dava para ver nos arredores, olho no visor e depois de alguns intermináveis minutos, SHAZAM!!!


O arredio Crypturellus obsoletus em uma de suas duas aparições


Depois de duas horas de espera, em que o silêncio havia sido quebrado somente uma vez, pelos clicks da pariri, o inhambuguaçu deixou a Pedra Encantada e ganhou novamente os recônditos mais sombrios da floresta.


Refeito do orgasmo ornitológico, minha esperança se voltou para o tinamídeo mais aguardado, o jaó-do-sul, um dos big lifers da Pedra Encantada.

"Primo" bem mais raro que o inhambuguaçu, o jaó-do-sul está associado a florestas primárias, ou seja, florestas que a ação humana não provocou significativas alterações das suas características originais.

Uma das poucas vezes que eu escutei um jaó-do-sul foi no Parque Estadual do Rio Doce, um dos pouquíssimos refúgios mineiros desta espécie tão ameaçada em nosso Estado. Lembro-me que fiquei horas escondido atrás de um grande tronco caído, utilizando playback, mas o máximo que consegui foi ver uma grande silhueta que apareceu rapidamente no alto de uma elevação no chão da floresta.

Continuei minha rotina que já durava mais de duas horas, sentado, de olho no visor da câmera, uma espiadinha nos arredores, cerrando os olhos e descansando de vez em quando, mas com aquela sensação maravilhosa que só a imprevisibilidade das aves nos dá.

O que poderia acontecer?! Restava menos de uma hora para finalizar minhas observações. O inhambu-chintã, outro belo e tinhoso lifer também podia pintar, assim como a tovaca-campainha, espécie fantástica e arisca que me faltava um registro à altura de sua beleza. Os urus estavam sumidos, conforme me relatou o grande Vilde, mas um dia com certeza eles não resistirão aos encantos da Pedra e voltarão.

Enfim, das espécies que estavam frequentando a Pedra, com certeza a que mais desejava era o jaó-do-sul e eu estava muito esperançoso, pois já tinha escutado ele uma vez.

O tempo se escoava,  mas a esperança se mantinha ilesa. E, apesar do seu tamanho, o jaó-do-sul apareceu como o inhambuguaçu, totalmente silencioso, causando aquele impacto dos grandes acontecimentos imprevisíveis.

Surpreso com sua aparição quase fantasmagórica, aproveitei alguns instantes para somente contemplar aquele ser fantástico e esquivo, que poucos puderam observar daquela forma, revelando sua vida secreta que ele tão bem aprendeu a manter em milhões de anos de evolução.

Crypturellus noctivagus, também conhecido como zabelê ou jaó-do-litoral, e a Pedra Encantada à direita


É isso amigos, o que eu posso dizer pra vocês é que ficar frente a frente com estes seres mexe com a alma da gente. Observá-los em sua intimidade e poder eternizar estes momentos, revelando detalhes praticamente impossíveis de conhecer sem a magia da fotografia, não tem preço. Com certeza voltarei, atraído pela Pedra Encantada e seu incrível poder de materializar as vozes da floresta.

Por fim, gostaria de mais uma vez agradecer e parabenizar o grande Vilde pelo belo trabalho que tem feito em Joinville. Muito obrigado meu amigo, voltarei o mais breve possível!


20 comentários:

  1. Que lugar, João, e que relato gostoso de se ler.
    Obrigado por esse post recheado de fotos inacreditáveis e tão bom.
    Abração.

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    1. Foi muito gostoso mesmo vivenciar aqueles momentos, muito obrigado meu amigo!

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  2. Que lugar, João, e que relato gostoso de se ler.
    Obrigado por esse post recheado de fotos inacreditáveis e tão bom.
    Abração.

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  3. Parabéns pelo trabalho João!
    Obrigado por compartilhar.
    Abraço
    Haroldo

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  4. Parabéns pelo trabalho João!
    Obrigado por compartilhar.
    Abraço
    Haroldo

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  5. Beleza de historia, parabéns muito bem descrito!! Obrigado João!!!

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  6. Pôxa, acordei do sonho - mergulhei em seus relatos e só ao término percebi que estava aqui no escritório. :)
    Sério!
    Grande abraço

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  7. Relato incrível, meu amigo. Pude sentir junto contigo a emoção do momento. Parabéns a você pelo relato e ao Vilde por ter apresentado os tinamídeos ao Brasil de uma forma jamais vista antes.
    Abração!

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  8. Que emoção hein!
    A partir do seu texto a gente sente uma energia muito boa do fato,e alegramos com tanta beleza exibida nas imagens .
    Parabéns pelos registros e relato, ler seu texto trouxe uma experiência incrível de poder viajar e sentir um pouco desta alegria sem sair do lugar.

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  9. Fantásticos João. Fantástico Vilde por proporcionar esta oportunidade, fantásticos os atores principais, fantásticos registros e fantástico João que tão bem nos relata esta epopéia.

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  10. Adorei o relato. Parabéns João pelo trabalho, foi uma experiência bem legal, viajei na sua história.

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  11. Nem preciso dizer muito mais, porque vários já expressaram meu pensamento-sentimentos.
    As fotos estão fantásticas.
    Parabéns!!!

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