terça-feira, 28 de junho de 2016

Canastra, da água ao vinho

Ave!

Quando tudo parece acabado. Quando aquele sentimento de frustração nos abate. E quando menos se espera... shazam! Uma reviravolta acontece!

E quando essa reviravolta supera nossas melhores expectativas? Vamos do inferno ao céu! Incrivelmente essa foi a tônica dessa viagem que fiz à Serra da Canastra a convite do meu querido tio Maninho Camarão. Creio a mais emocionante de todas!

Tio Maninho no seu lugar favorito, a magnífica serra da Canastra

No caminho para nossa pousada, em São João Batista da Canastra, pitoresca vila onde fica o melhor acesso à parte alta do Parque Nacional da Serra da Canastra, fizemos aquela parada obrigatória na nascente do rio São Francisco. Seguindo dica de amigos, tentava o pula-pula-de-sobrancelha, que depois vim a saber que não responde nessa época.

Muito silêncio e frio atípico, como está sendo de praxe ultimamente. Só alguns Mimus saturninus que, de tão famintos, não se importaram com nossa presença, a ponto do meu tio alimentá-los na mão.

Realmente no caminho até ali pouquíssima movimentação, naturalmente as aves migratórias não se encontravam e das residentes e interessantes, só encontramos um tico-tico-de-máscara-negra.

Retornando para seguirmos viagem, eis que me deparo com um grande tamanduá-bandeira, o mamífero que mais queria encontrar nessa viagem! Nunca o havia encontrado, mesmo já visitando a Canastra outras três vezes.

O ilustre desdentado estava de costas, acabara de atravessar a estrada e seguiu beirando o recém-nascido rio São Francisco.



Tentava me antecipar para pegá-lo em uma boa posição, mas depois de uma breve e precária aparição entre a vegetação, ele sumiu e reapareceu do outro lado do rio.

Apressei o passo, retornei e dei a volta pela primeira ponte sobre o Velho Chico. Tio Maninho, que estava entretido com os Mimus, preferiu não me acompanhar, também "pra não me atrapalhar", como costuma dizer.

Segui então dessa vez pela margem direita. Passo ligeiro, até que avistei o bichão. Provavelmente já tinha me avistado e estava trotando a uma boa distância.

Neste momento me lembrei de uma foto antológica do saudoso Mestre Marigo correndo atrás de um bandeira, salvo engano naqueles mesmos campos da Canastra.

Parecia que nunca o alcançaria, mas não desisti! Continuei no seu percalço até que ele entra numa espécie de muro natural de pedras que, de onde eu estava, não conseguia ver o outro lado. Pensei, é agora q tenho alguma chance! Acelerei na esperança de surpreendê-lo do outro lado do "muro".

Já em cima da tal formação, ofegante, esforçando-me para ficar em total silêncio, deparei-me com uma bela paisagem cuja atração principal era o ainda muito jovem Velho Chico que suavemente corria entre pedras.

A vista alcançava grande distância e o espanto era enorme: onde foi parar o tamanduá?! Escaneei todo o terreno com atenção. Como um bicho daquele tamanho conseguiu sumir daquela maneira?

Enquanto recuperava o fôlego, comecei a "viajar" naquela belíssima paisagem, como que me consolando, ao mesmo tempo que perplexo pelo sumiço daquele grande animal.

Já me encontrava desanimado e me preparando psicologicamente pra desistir até que, shazam! Eis que me sai do muro, do meu lado, o grande tamanduá-bandeira!

Estava ali o tempo todo! Provavelmente achou algum alimento entre as pedras! E ainda veio em minha direção, tranquilamente, continuando sua busca por alimento! O coração acelerou, continuei imóvel, ele chegou a cerca de 3 metros!!!

As fotos seguintes estão sem crop e revelam um pouco da intimidade deste magnífico animal:


Procurando com seu olfato apurado formigas e cupins, praticamente seu único alimento


Neste momento creio que ele me detectou, pelo olfato, já que deve ser praticamente cego

Tamanduá-bandeira, com seus mais de 2 metros de comprimento, atravessando o rio São Francisco


Com o sentimento de começar com o "pé direito" a viagem, seguimos direto pra casa do Sô Vicente que nos recebeu com um delicioso jantar à beira do fogão à lenha. Depois de boas falas fomos descansar para nosso segundo e principal alvo, a ave aquática mais ameaçada de extinção do mundo, o fantástico pato-mergulhão.


Sem pausas chegamos à parte alta da Casca d'Anta. Com muita astúcia, bolei um plano infalível para conseguir fotografar o raríssimo e arredio pato. Levei um blind que praticamente estrearia nessa empreitada. Subi o rio até achar um local favorável. Com um certo esforço consegui chegar até à beira do rio, e, em meio à vegetação ciliar, achei um único local onde havia uma boa "janela" para conseguir fotografar o pato e um espaço pra montar o blind. A ideia era ficar de tocaia ali até ele passar.

Quando estava terminando de preparar o esconderijo, um casal passa em longo voo, subindo o rio. "Caraca", pensei, "não descerão tão cedo agora".

Uma, duas, três horas de espera, tomando todo cuidado para não me denunciar. Tive o cuidado até de esperar ventar pra fazer algum movimento maior dentro do blind. Havia combinado com meu tio que até uma certa hora retornaria para nosso já reservado almoço no Sô Vicente. E com muito pesar desisti. Com todo desânimo comecei a levantar acampamento. Havia até esquecido como desmontar o blind, desisti disso também.

Sem querer olho despretensiosamente para o rio, que naquele ponto parecia um lago, e shazam!!!

Há pouco mais de duzentos patos em todo mundo
Foto sem crop

Embasbacado e me sentindo um grande tolo, observei este tranquilo casal passar sem se incomodar com minha presença. Peguei a câmera bem lentamente para não correr o risco de espantá-los e fiz as fotos que pude.

Comoveu-me tanta mansidão daquela raridade. E todas aquelas histórias que ouvi de quão eram ariscos? Meu tio Maninho, que ficara no poço ao lado do estacionamento, ficou a poucos metros deles e até sem saber fotografar fez um bom registro com uma superzoom.

Depois que eles passaram, comecei a rir de mim mesmo. E no fim das contas bastava ter ficado no poço ao lado do estacionamento que provavelmente faria fotos melhores que as que eu fiz ali.

Mas este não foi o único encontro que tive com o pato-mergulhão, quando retornei ao poço que meu tio estava pude observá-lo e registrá-lo lá também, assim como no dia seguinte, na cachoeira do Fundão, considerada a mais bonita de Minas Gerais e onde soube, pelo grande amigo Alessandro Abdala, que um casal de águias-serranas estava fazendo ninho.

Display do pato-mergulhão no poço ao lado do estacionamento da parte alta da Casca d'Anta

Por um momento até duvidei das histórias que falam da dificuldade que é fotografar essa espécie, mas soube de relatos que três dias depois observadores passaram o dia inteiro neste lugar e não viram o bicho e uma semana atrás a mesma história se repetira. Alguns amigos que guiam na região também nunca o viram na cachoeira do Fundão, e lá encontrei três! Sem dúvida o fator sorte foi decisivo para que minhas melhores expectativas fossem superadas.


Famoso pela raridade e pela dificuldade em fotografar, havia planejado, nesta rápida viagem, até dois dias para o pato-mergulhão, e como no primeiro dia já estava satisfeito, concordamos em ir até a cachoeira do Fundão no dia seguinte. Aproveitaríamos para conhecê-la e, claro, tentar observar a águia-chilena fazendo seu ninho.

A estrada de acesso ao Fundão tem trechos bem íngremes e como não estávamos com um modelo traçado, seguimos o conselho do guarda-parque, em certo ponto deixamos o carro e seguimos a pé.

Um parênteses: depois que fizemos todo o percurso, cheguei à conclusão que até dava pra ir com o Duster(bão de terra!), mas ainda bem que decidimos encarar os 16 kms de subidas e descidas a pé.

Iniciamos então a descida até a cachoeira, e como de praxe, com aquele olhar viciado em procurar rapinantes.

Depois de uma grande descida, vi um tronco, muito longe, que parecia que tinha a ponta mais grossa. Desconfiei! Rapidamente peguei a câmera! O coração acelerou! Tirei uma foto:

Foto sem crop(600 mm)

Aproximando no visor da câmera, com alguma dificuldade consegui identificar, tratava-se de uma águia-cinzenta! A segunda maior águia do Brasil, espécie muito ameaçada que conta talvez com cerca de 3 centenas de exemplares na natureza, um bicho magnífico que motivou minha primeira viagem à Canastra, em janeiro de 2012, com o próprio tio Maninho Camarão, na ocasião guiados pelo excelente Alessandro Abdala, que veio a se tornar um grande amigo nosso.

Eufórico, contei o grande achado pro meu tio, que topou uma caminhada extra com o intuito de nos aproximarmos do grande rapinante.

Com o coração saindo pela boca, seguimos com esperança de conseguirmos uma boa aproximação, apesar de não haver como nos escondermos, já que a paisagem era dominada por campos limpos.

Num certo ponto a águia começou a vocalizar. Pra mim, a mais bela vocalização entre os acipitrídeos. Mas isso não era um bom sinal, nossa aproximação já a incomodava. Diminuí a velocidade das passadas, tio Maninho estancou, pra não atrapalhar. Continuei com a mesma estratégia, aproximação oblíqua e sem encarar de frente. De quando em quando parava e fotografava, até que, sem avisar, e ainda bem distante, a águia voa!

Muito entristecido continuei clicando aquele enorme predador alado voando para longe. Pensei: pôxa, voou tão cedo, que pena... podia me deixar chegar um pouco mais perto...

Mas então, SHAZAAAM!!!

Amigos, vocês podem não acreditar, porque até mesmo eu, presenciando a cena, não acreditei! Não sei o porquê, mas o bicho deu meia-volta e retornou para o mesmo local!!! E como se isso fosse pouco, alguns instantes depois outra águia chega e pousa na mesma árvore!!!

Do inferno ao céu!!!






Ainda sem acreditar naquele fato inédito, permaneci estático, numa espécie de estado catatônico. O que foi aquilo?!!! O bicho sai voando, claro que devido à minha aproximação, já que se conhece bem sua índole fleumática. E então, sem nenhuma explicação, volta para o mesmo lugar?!!! Continua vocalizando, e então chega outra águia?!!! Que que é isso?!!! INCRÍVEL!!!

Custei a me recobrar! Então cheguei mais perto, mais clicks, ainda extasiado. Uma águia voa, a outra a segue, larguei a câmera e me permiti o privilégio de somente observar aqueles dois "monstros" sobrevoando os vastos campos da Canastra, com lentas e pesadas batidas de suas longas e largas asas cinzentas, contrastando com o verde das pradarias sem fim.

Não poderia terminar de outra forma esse relato, com essa cena que sem dúvida, apesar de não registrada, ficará pra sempre em minha memória.

Bem amigos, só deixo um alerta aqui: uma boa parte deste santuário está sendo ameaçado. Querem diminuir a área do Parque, ao que tudo indica, para extrativismo mineral de áreas que hoje são um dos últimos refúgios de espécies magníficas e ameaçadas. Se isto se concretizar, será uma perda irreparável.


8 comentários:

  1. Rico relato, como sempre! Narrativa com conteúdo e impressões pessoais cativantes. Abração

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  2. SHAZAAAM!!!
    Mais um relato fantástico do grande amigo João. Que beleza.
    Assombração sabe para quem aparece, e parece que os passarinhos também.

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  3. Que beleza João Souza, vc nos transportou para a Serra da Canastra. Parabéns.

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  4. Desculpe o palavrão mas....
    Caralho mano
    que encontro emocionante com o Bandeira !!! Este tá na minha lista faz tempos
    Que foto incrível do Pato Mergulhão... tomara que consigue tb ...
    O meu top 8 de gaviões está a coronata ... realmente a vocalização é absurda e o tamanho nem se fala
    Acho que se tiver este encontro ... preocupo mesmo com meu coração
    Final do mês to garrado na Canastra tomara que eu tenha a mesma sorte.
    Párabens pelo relato !

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